Diabólicos

16 JAN 2009 • POR Redação • 07h38

Nesses tempos de crise e de guerras, sugiro uma parada estratégica para ler "Curveball" (Editora Novo Conceito, 270 páginas), do jornalista norte-americano Bob Drogin, já traduzido para o português. Você vai encontrar ali, detalhe por detalhe, a novela completa e chocante de como os órgãos de inteligência dos Estados Unidos conduziram George W. Bush e Colin Powell ao desastre da guerra do Iraque. Porque queriam ser conduzidos...
Com Israel jogando bombas sobre escolas da ONU e sobre cabeças de mulheres e crianças, ameaçando transformar a faixa de Gaza no "maior cemitério do mundo", como se tem dito, um foco do livro se torna cruelmente atual: os órgãos de inteligência -- ou melhor, de espionagem -- dos EUA, da Alemanha, da Inglaterra e de Israel trocam informações o tempo inteiro. Trabalham unidos. E erram unidos . Azar dos adversários comuns.
No caso norte-americano, é assustador, petrificante, saber como eles produziram uma teia imensa de órgãos de espionagem que, em vez de se completarem, disputam entre si e fazem ouvidos moucos a tudo o que contraria o que eles próprios querem ver, ler, ouvir. Há a Cia, civil, a Dia, militar, o serviço Humint (que cuida de agentes desertores) da Dia, a NSA (Agência de Segurança Nacional). Sem contar que a própria ONU é infestada de agentes. Cada um desses órgãos corre para um lado, como linhas paralelas.
O BND, da Alemanha, "descobriu" um desertor iraquiano (apelidaram-no de "Curveball") que era engenheiro e se dizia importantíssimo, um peixe na água nos escalões que projetavam e executavam umas tais "fábricas móveis" de produção de diabólicos agentes biológicos para disseminar antraz, toxina botulínica, cólera e sabe-se mais o que contra exércitos e populações inimigas.
Desde o início havia indícios mais do que suficientes de que o tal cara era um amalucado, mentiroso contumaz, que adaptava suas histórias mirabolantes ao gosto do freguês, ou seja, dos agentes alemães. Ele era viciado em internet, colhia dados sobre agentes biológicos em documentos da própria ONU e falava o que eles, na verdade, queriam ouvir. Construía uma versão. Eles compraram alegremente.
Os depoimentos eram em árabes e traduzidos para o alemão, o que já é uma ginástica. Depois, eram traduzidos novamente, desta vez para o inglês. No fim, viravam resumos aproveitando só o "sumo" do que ele dissera. Sem, portanto, todas as ressalvas, as dúvidas, as incongruências. E eram assim que desembarcavam nos altos escalões políticos de Washington.
Os alemães nunca abriram o verdadeiro nome da "fonte" para os americanos nem permitiram que eles os entrevistassem diretamente antes da guerra. Pasme! Colin Powell foi ao Conselho de Segurança da ONU co m um discurso que varou o mundo e entupiu as telas de TV justificando a invasão do Iraque com base numa única fonte, ao qual os EUA nunca tiveram acesso e da qual nem sequer sabiam o nome. É possível? Foi. O governo Bush invadiu o país alheio, gastou bilhões de dólares, matou milhares de iraquianos e de americanos com base no disse-que-disse.
Depois, se viu que o Iraque, coitado, não tinha armas atômicas, nem armas químicas, muito menos armas biológicas. Era tudo pura estória da carochinha. Crianças acreditam em Papai Noel. O governo Bush quis acreditar em "Curveball" (bola com efeito), o iraquiano biruta e oportunista que estava louco para ganhar uma Mercedes dos alemães. O único (e grande) pecado iraquiano era Saddam Hussein, o ditador sanguinário que acabou humilhado e enforcado. Mas este não era um problema da Casa Branca. Muito menos lhe dava o direito de invadir a casa alheia.
Bem, mas leia o livro. É imperdível, principalmente agora que as grandes potências assistem de braços cruzados Israel reagir "desproporcionalmente", como todos admitem, aos "terroristas" do Hamas e a seus foguetes de fabricação praticamente caseira. A guerra do Oriente Médio é daquelas em que os dois lados têm razão, e nenhum dos dois lados tem razão nenhuma. Falta dialogar. Mas quem está por trás deles é infinitamente culpado.
Força é poder. E força inebria, embriaga e pode gerar tragédias que marcam a história de pessoas, de famílias, de países e do próprio mundo para sempre. O pior disso é que a força, nesses nossos tempos, vem de informações de órgãos e pessoas completamente irresponsáveis e fora de si.
A guerra do Iraque é um escândalo. Mas será que alguém aprendeu alguma coisa com ela?

Eliane Cantanhêde é colunista e editora de redação