
Por Wilson Pires – Especialista em Gestão de Condomínios | Artigo para o RCN67

Todo fim de ano a cena se repete. A contagem regressiva, os abraços, as mensagens de “feliz ano novo”, os desejos de um ano melhor. Mas, junto com tudo isso, vêm os estouros. Altos, secos, imprevisíveis. E é aí que, para muita gente, a virada deixa de ser festa.
Eu trabalho com condomínios há mais de uma década. Já vivi mais de dez viradas de ano dentro deles acompanhando de perto moradores, famílias, crianças, idosos e animais. E posso afirmar com tranquilidade: fogos com barulho, dentro de condomínios, não são apenas uma tradição inofensiva. Eles causam medo, crises, sofrimento e conflitos que poderiam ser evitados.
Não é opinião do síndico. É lei.
Em Campo Grande, a legislação é clara: é proibida a queima e a soltura de fogos de artifício com estampido, em qualquer local da cidade. A regra está prevista na Lei Complementar nº 406/2021, que alterou o Código de Polícia Administrativa do município.
A lei existe justamente para proteger quem mais sofre com o barulho: crianças, idosos, pessoas com deficiência, pacientes em tratamento e também os animais. O descumprimento pode gerar multa de R$ 1.000, dobrando em caso de reincidência.
Ou seja, quando o condomínio orienta, quando o síndico alerta, não é autoritarismo. É responsabilidade.
No Estado, o cuidado também existe
No âmbito estadual, o Mato Grosso do Sul também possui normas que tratam do controle e da segurança envolvendo fogos de artifício. A Lei Estadual nº 1.268/1992 restringe o comércio desses produtos, e o próprio Corpo de Bombeiros estabelece critérios técnicos rigorosos para armazenamento, manuseio e uso.
Fogos não são brinquedo. E nunca foram pensados para ambientes residenciais coletivos, muito menos para serem disparados de janelas, sacadas ou áreas comuns de condomínios.
Quem realmente sofre com os fogos
Aqui está o ponto que mais me marca todos os anos.
Crianças com TEA e hipersensibilidade sonora
Para muitas crianças com Transtorno do Espectro Autista, o barulho não é apenas desagradável. Ele pode provocar crises intensas, pânico, desorganização emocional e sofrimento físico. Já vi pais passarem a virada do ano trancados em quartos, tentando acalmar filhos desesperados, enquanto do lado de fora alguém “comemorava”.
E isso não acaba à meia-noite. As consequências seguem madrugada adentro.
Idosos, bebês e pessoas com deficiência
Idosos se assustam, sentem o impacto físico do susto. Bebês acordam chorando, desregulam o sono. Pessoas com deficiência, transtornos de ansiedade ou condições neurológicas passam por momentos de extremo desconforto. Nada disso é exagero. É realidade cotidiana para quem vive em condomínio.
Animais domésticos: medo, fuga e acidentes
Quem é síndico sabe bem: depois da virada, começam os relatos. Cachorros tremendo, gatos sumidos, animais que tentaram fugir e se machucaram, portões arrebentados, buscas desesperadas no dia seguinte.
Para os animais, o barulho não é “festa”. É ameaça.
“Mas é só uma vez no ano…”
Essa talvez seja a frase que eu mais escuto.
E a resposta é simples:
para quem não sofre, é só uma vez.
para quem sofre, é uma violência sonora anunciada.
Viver em condomínio é, acima de tudo, viver em coletividade. E coletividade exige empatia. Exige entender que o direito de comemorar não pode atropelar o direito do outro de ter paz, segurança e dignidade dentro da própria casa.
Dá para comemorar diferente e melhor
Celebrar o Ano Novo não precisa ser sinônimo de barulho. Existem alternativas: fogos sem estampido (dentro das regras legais), iluminação, música em volume adequado, confraternizações organizadas, contagem regressiva com as crianças, decoração, união.
Já vi condomínios inteiros celebrarem sem um único estouro e, sinceramente, o clima foi muito mais bonito.
Um recado final, de quem vive condomínio todos os dias
No dia 31 de dezembro, ninguém está pedindo para acabar com a alegria. O pedido é outro: comemore sem ferir, sem assustar, sem causar dor a quem está ao seu lado.
Porque no dia seguinte, quando o barulho passa, o que fica não é o brilho no céu.
É a lembrança do respeito ou da falta dele.
E condomínio nenhum se constrói apenas com concreto.
Ele se constrói com empatia, consciência e cuidado com o próximo.