O rápido avanço da inovação digital e a crescente integração de tecnologias disruptivas, como a inteligência artificial (IA), em nossas vidas são inegáveis: seja na recomendação de um filme, na sugestão de rotas em um aplicativo ou na automação de decisões importantes, a IA já faz parte do nosso cotidiano. Contudo, essa revolução tecnológica traz consigo preocupações significativas, em especial acerca do tema do enviesamento de dados, que pode levar a decisões algorítmicas injustas para determinados grupos sociais, com potencial para causar danos reais a pessoas e empresas.
Não é de hoje que se discute casos de algoritmos que reproduzem e até amplificam preconceitos sociais, resultando em discriminação. Precisamos deixar claro desde já, porém, que a inteligência artificial, por si só, não é preconceituosa ou maliciosa; ela é uma programação que executa tarefas com base nos dados com que foi treinada e nas escolhas feitas em seu desenvolvimento. O problema surge quando os dados de treinamento, o design dos algoritmos ou as decisões humanas envolvidas no processo incorporam e replicam valores implícitos, desigualdades históricas ou desequilíbrios estatísticos presentes na sociedade.
Recentemente, a popularização de ferramentas de IA generativa, como o ChatGPT, democratizou o acesso a essa tecnologia e transformou diversos setores. No entanto, modelos de linguagem grande (LLMs) como esses, que desempenham um papel cada vez mais proeminente em áreas como jornalismo, educação, pesquisa e eleições, também carregam o potencial de refletir vieses. Um estudo publicado no Journal of Economic Behavior and Organization, intitulado “Assessing political bias and value misalignment in generative artificial intelligence“, representa uma investigação pioneira sobre o viés político mensurável em um sistema líder de IA generativa. Ele contribui para uma melhor compreensão da ideologia desses modelos.
Mas, afinal, como esses vieses se instalam nos sistemas de IA? A análise aponta para diversas fontes. Uma das mais comuns é o viés do conjunto de dados, que ocorre quando os dados usados para o treinamento não são representativos da população real ou do contexto em que o modelo será aplicado. Isso pode incluir vieses históricos, que refletem preconceitos sociais passados, ou vieses de representação, com subamostragem de certos grupos. Imagine um sistema de reconhecimento facial treinado predominantemente com imagens de homens brancos; estudos já demonstraram que a precisão para mulheres de pele mais escura será significativamente menor. Isso explicita a “algoritmização” de desigualdades socialmente estruturadas. Outro exemplo clássico é a tradução automática, onde, historicamente, o Google Translate, treinado em vastos conjuntos de dados textuais que refletiam preconceitos sociais, associava a palavra “médico” no masculino, e “enfermeira” no feminino, em idiomas que não possuem gênero, embora estatisticamente mais enfermeiras sejam mulheres. Assumir essa correlação como uma regra geral, apesar da existência de homens enfermeiros, é um viés incorporado pelos dados.
Os riscos para o conteúdo gerado por modelos de IA generativa são múltiplos e preocupantes. Se um modelo é treinado em dados que contêm estereótipos de gênero, raciais ou políticos, ele pode reproduzir esses estereótipos em seus resultados – vimos exemplos disso em geradores de imagem que produziram representações enviesadas e até racistas. Em domínios sensíveis como o jurídico ou a saúde, a utilização indiscriminada de modelos enviesados, sem avaliação humana adequada, pode levar a diagnósticos errados, tratamentos inadequados, ou decisões judiciais injustas, com sérias consequências para a dignidade e os direitos fundamentais dos indivíduos. O potencial de tais sistemas atuarem como formas de controle social que afetam liberdades essenciais também é real. Além disso, a dependência de sistemas enviesados pode excluir certos grupos de consumidores ou cidadãos, minando o caráter aberto, plural, e participativo das redes.
Diante desse cenário, a mitigação dos vieses na IA é um processo contínuo e crucial, que exige uma abordagem multifacetada ao longo de todo o ciclo de vida do desenvolvimento. Isso inclui medidas técnicas, como a curadoria e ampliação de dados para garantir a representatividade e o equilíbrio entre diferentes grupos. É fundamental selecionar e modificar algoritmos para que incorporem restrições de justiça, ou mesmo treinar modelos para identificar e penalizar o aprendizado de vieses. A transparência e a explicabilidade dos modelos (XAI) também ajudam a compreender seu comportamento e identificar fontes de viés. Existem ferramentas, inclusive de código aberto, para ajudar a detectar e mitigar qualquer discriminação promovida pelo algoritmo.
Contudo, as soluções não se limitam ao campo técnico. É primordial despertar a consciência dos desenvolvedores e analistas sobre as consequências sociais e culturais dos vieses, reconhecendo como as desigualdades existentes na sociedade são transmutadas para o espaço digital. Implementar diretrizes éticas robustas e estruturas de governança, referenciando marcos regulatórios existentes, é vital para guiar o desenvolvimento e a implementação da IA de forma responsável. A discussão sobre o que significa ser “justo” ou “imparcial” em um contexto algorítmico é um desafio fundamentalmente humano, que exige o envolvimento de especialistas em ética, direito e áreas sociais, e não apenas técnicos e programadores. Embora a eliminação completa do viés possa ser um ideal distante, já que a IA reflete os dados e as pessoas que a criam, o objetivo deve ser minimizar o enviesamento, especialmente em aplicações de alto impacto. Isso requer metodologias sólidas, avaliação rigorosa dos dados e refinamento contínuo.
Embora a IA nos ofereça capacidades fantásticas, delegar a ela a responsabilidade irrestrita pela informação ou pelas decisões sem questionamento é um caminho perigoso. Assim como precisamos ter cautela com o que publicamos e com a polarização que as redes sociais podem agravar, alimentadas por algoritmos que reforçam nossas próprias visões, também precisamos abordar o conteúdo gerado por IAs com um olhar atento. É fundamental lembrar que a “verdade” na era digital é um tema complexo, e a própria distinção entre o que é real e o que é fabricado ou descontextualizado pode ser desafiadora. Nenhuma tecnologia, por mais avançada que seja, está imune a refletir as imperfeições do mundo real.
Nesse sentido, a recomendação final e inegociável é: sempre revise e verifique as informações fornecidas pelas IAs. Não aceite o conteúdo gerado como a verdade absoluta ou imparcial. Busque fontes adicionais, questione as premissas e esteja ciente do potencial de viés inerente a qualquer sistema que aprende com dados históricos e refletem construções humanas. Ao fazer isso, cada usuário se torna uma peça ativa na contenção da disseminação de informações enviesadas ou incorretas, contribuindo para um ambiente digital mais justo e informado. A tecnologia é uma ferramenta; a responsabilidade de usá-la de forma ética e consciente, mitigando seus riscos, recai sobre todos nós.
*Raphael Rios Chaia contribui com análises e artigos sobre tecnologia digital