Um artigo publicado na revista The Lancet Infectious Diseases, na terça-feira (24) defende a inclusão ética e responsável de pessoas privadas de liberdade em estudos clínicos de vacinas contra a tuberculose. A publicação – uma das mais prestigiadas e influentes do mundo na área da saúde – é assinada por especialistas da Fiocruz, incluindo o pesquisador, infectologista e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Julio Croda.
No texto, o pesquisador defende que a alta incidência da doença em ambientes prisionais torna essa população essencial para o avanço científico.
Segundo os autores, a taxa de incidência da tuberculose entre pessoas em situação de prisão no Brasil é cerca de 30 vezes maior do que na população em geral.
“Esse é o grupo com maior risco de infecção, e justamente por isso é o que mais pode contribuir para entender a eficácia das vacinas”, explica Croda.
Ele aponta que a participação dessa população em fases avançadas dos testes (como as fases 2b e 3) pode acelerar a geração de dados robustos, reduzir custos e permitir o registro mais rápido de vacinas eficazes.
Realidade prisional amplia impacto da doença
As prisões brasileiras enfrentam superlotação, má ventilação e uma série de fatores sociais que agravam a vulnerabilidade à tuberculose, como coinfecção por HIV, desnutrição e histórico de uso de substâncias. Além disso, a circulação constante de servidores, visitantes e familiares facilita a disseminação da doença para fora dos presídios, impactando a comunidade em geral.
Atualmente, não há estudos vacinais contra a tuberculose em andamento no Brasil. O principal obstáculo, segundo os autores do artigo, é a restrição imposta por financiadores internacionais que proíbem a inclusão de pessoas presas nos protocolos clínicos. “Essa exclusão, embora motivada por preocupações éticas, na prática dificulta a realização de pesquisas em populações onde a doença é mais prevalente”, destaca Croda.
Diretrizes para garantir a ética e a segurança
O artigo propõe um conjunto de medidas para assegurar que a participação de pessoas privadas de liberdade em estudos clínicos ocorra de forma ética, segura e voluntária. Entre elas estão:
- Criação de conselhos comunitários consultivos nos estabelecimentos penais, promovendo representatividade e diálogo;
- Elaboração de termos de consentimento em linguagem acessível, facilitando a compreensão e a tomada de decisão;
- Garantia de autonomia dos participantes, com proteção contra qualquer forma de coerção;
- Acesso equitativo à assistência em saúde, independentemente da participação no estudo;
- Inclusão ativa de representantes das pessoas presas, da comunidade científica e de gestores prisionais na elaboração dos protocolos.
“O direito à ciência também é um direito humano”
O artigo reforça que o acesso à ciência é um direito humano, inclusive — e especialmente — para quem enfrenta barreiras históricas, sociais e institucionais. “Negar a participação em nome da proteção pode acabar se tornando uma forma de negligência”, afirma Julio Croda. “Não podemos continuar decidindo por essas pessoas sem ouvi-las. Protocolos bem construídos e com consentimento livre e esclarecido são totalmente viáveis”.
A publicação da The Lancet lança luz sobre a urgência de repensar os limites éticos e operacionais da pesquisa clínica, propondo caminhos para tornar a ciência mais inclusiva e transformadora. Para os autores, garantir a participação segura e voluntária de pessoas em situação de prisão em estudos de saúde pública não é apenas uma questão científica — é também um compromisso com a justiça social.