
Em sequência de episódios, trabalhadores paralisaram atividades, Estado e Prefeitura divergiram sobre obrigações, e a Justiça determinou medidas de intervenção.
A crise da Santa Casa de Campo Grande voltou a ganhar força quando, em uma sequência de fatos públicos, servidores paralisaram atividades por causa do impasse do 13º salário. Ao mesmo tempo, Estado e Prefeitura apresentaram versões distintas sobre responsabilidades e fluxo de repasses. No mesmo período, uma decisão judicial determinou medidas de intervenção e a apresentação de um plano emergencial. A decisão foi tomada sob o argumento de risco concreto de descontinuidade de serviços essenciais.
O estopim: 13º, parcelamento e ameaça de colapso assistencial
A paralisação ocorreu após o atraso do 13º salário e, principalmente, depois de ter sido apresentada a proposta de parcelamento do benefício em três vezes. Este parcelamento foi previsto para começar em janeiro de 2026. O movimento mobilizou parte do quadro de cerca de 3.600 funcionários e foi acompanhado por assembleia que rejeitou o parcelamento. Houve exigência de pagamento integral para encerrar o protesto.
Mesmo com a manutenção de aproximadamente 70% do efetivo para atendimentos de urgência, cerca de 600 manifestantes permaneceram no entorno da unidade. Enquanto isso, lideranças buscavam diálogo com o Governo do Estado para destravar recursos. Além do 13º salário, foram relatadas queixas de atrasos de pagamentos. As queixas incluíram falta de condições de trabalho e sobrecarga, em um cenário descrito como recorrente pelos sindicatos do hospital.
No embate público, o risco de colapso passou a ser citado também por entidades médicas. O Conselho Regional de Medicina (CRM-MS) afirmou preocupação com a situação. A partir de fiscalizações, foi apontado baixo estoque de medicamentos de emergência. Além disso, houve preocupação com o possível “efeito cascata” sobre a rede de saúde de Campo Grande caso a assistência da Santa Casa seja comprometida.
O que dizem os sindicatos: “sem recurso, não paga”
Representantes sindicais sustentaram que o não pagamento foi comunicado às vésperas do vencimento. Eles afirmaram que a mobilização expressou um acúmulo de problemas enfrentados ao longo do ano. O Sindicato dos Trabalhadores na Área da Enfermagem de MS (Siems), por exemplo, relacionou a reação dos trabalhadores a atrasos. A precariedade das condições de trabalho também foi apontada, indicando desgaste da equipe.
Já o Sindicato Intermunicipal dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Serviços de Saúde de Mato Grosso do Sul (Sintesaúde) reforçou que a reivindicação atravessou setores diversos, dos serviços de limpeza ao corpo médico. Este sindicato afirmou que a paralisação seria mantida até a quitação integral do 13º. Também foi relatado que a administração do hospital teria informado falta de caixa. Sem a chegada de recursos públicos, segundo eles, o pagamento não seria viabilizado.
Repasses e responsabilidades
Pelo lado municipal, foi declarado que os repasses de responsabilidade da Prefeitura estariam em dia. Além disso, aportes extras mensais de R$ 1 milhão vêm sendo realizados desde o início de 2025 para auxiliar no custeio do hospital. O diálogo com a direção da instituição foi mantido para preservar atendimentos e reduzir impactos à população.
Já pelo lado estadual, foi sustentado que não existiria pactuação que atribuísse ao Governo de Mato Grosso do Sul a responsabilidade pelo pagamento do 13º. Foram detalhados os repasses de contratualização. Informou-se que os pagamentos são feitos ao município de Campo Grande “sempre no quinto dia útil”. De janeiro a outubro, R$ 90.773.147 foram repassados, com média mensal de R$ 9.077.314,70. Em novembro, um acréscimo de R$ 516.515,89 elevou o repasse mensal para R$ 9.593.830,59.
Ainda na mesma nota, foi registrado que repasses adicionais realizados em anos anteriores teriam sido extraordinários e não criariam obrigação permanente. O Estado também mencionou o envio de R$ 25 milhões em 2025, com recursos oriundos da bancada federal, além dos repasses obrigatórios.
Repasse de R$ 25 milhões e a cobrança por mudança na gestão
O debate sobre financiamento foi conectado, ao mesmo tempo, à discussão de governança. Em reunião formalizada em 03/04/2025, o repasse de R$ 25 milhões foi apresentado como socorro financeiro. Essa proposta foi acompanhada de pressão por mudanças estruturais e no modelo de gestão do hospital. O governador Eduardo Riedel declarou, durante o encontro, a necessidade de alteração do modelo administrativo.
O aporte foi viabilizado via Fundo Estadual de Saúde, a partir de emendas parlamentares. A liberação foi organizada em três parcelas de aproximadamente R$ 8,3 milhões, com previsão de pagamentos entre 20 de abril e junho. Essa medida foi citada como tentativa de reabastecer estoques e destravar a assistência hospitalar.
Na contextualização apresentada na reportagem, medidas anteriores também foram lembradas. Um convênio de R$ 15 milhões em 2024 foi citado como tendo sido feito em três parcelas. Além disso, houve a menção a um repasse de R$ 9 milhões relacionado a um décimo terceiro. Este repasse foi descrito como “não previsto em contrato” e usado como argumento de que aportes vinham sendo ampliados. Isso ocorreu enquanto o discurso sobre gestão se tornava mais duro.
O encontro ainda reuniu atores políticos e gestores de diferentes esferas, incluindo representantes da bancada federal e autoridades locais. Isso evidenciou a dimensão política do tema e o caráter recorrente das tentativas de estabilização financeira do hospital.
O Judiciário entra em cena: intervenção e plano obrigatório
A intervenção foi determinada no âmbito de uma ação civil pública movida pelo MPMS. Foi apontado pelo juiz Eduardo Lacerda Trevisan (2ª Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos) que haveria indícios de descontinuidade de serviços essenciais. Também foi registrado que falhas na gestão e insuficiência de recursos poderiam comprometer pronto atendimento. Internações e procedimentos de alta complexidade do SUS também seriam comprometidos, com impacto direto sobre toda a rede pública.
Pela decisão, os entes responsáveis devem apresentar, em 90 dias, um plano de ação para regularizar repasses. Este plano deve garantir pagamento de fornecedores e assegurar continuidade dos serviços. Em caso de descumprimento, foi prevista multa diária e a possibilidade de sequestro judicial dos valores correspondentes ao déficit orçamentário. Este déficit foi apontado pela mantenedora (ABCG) em R$ 12 milhões mensais, com rateio em partes iguais entre Prefeitura e Governo do Estado. Também foi indicado que a Santa Casa pode recorrer em 15 dias.
O que a crise revela
Com greves, notas oficiais, cobranças por reestruturação e judicialização, a crise passou a expor um impasse que se repete. De um lado, trabalhadores pressionam por direitos e condições mínimas. De outro, entes públicos defendem a regularidade de repasses e contestam obrigações específicas. Ao centro, a gestão do hospital é cobrada por eficiência e previsibilidade. Assim, enquanto a discussão se mantém aberta, a Santa Casa segue descrita como peça estratégica para o funcionamento do SUS em Campo Grande. Por isso, qualquer instabilidade tende a repercutir sobre toda a rede.