Enquanto mais de 1.300 crianças seguem aguardando uma consulta ortopédica na rede pública de saúde de Mato Grosso do Sul, mães como Vera e Gleicy acumulam anos de espera, idas e vindas a hospitais, dor constante nos filhos e decisões judiciais para garantir o básico: acesso à cirurgia.
A reportagem dá continuidade à denúncia feita pela ortopedista pediátrica Marina Juliana Figueiredo, em entrevista ao programa Microfone Aberto, da Massa FM Campo Grande, quando apontou atrasos de até dois anos por consulta e alertou sobre os riscos de sequelas irreversíveis, inclusive mortes, por falta de diagnóstico precoce.
Mas, na prática, o problema vai além da espera para uma simples consulta. Em muitos casos, como o de Gleicy Pinho, mãe de Nicoli, a fila durou dez anos até que a menina conseguisse a tão esperada cirurgia para corrigir uma luxação congênita no quadril.
“Ela sentia muita dor na perna. Se não tivesse feito a cirurgia, teria que usar cadeira de rodas. Foram anos só com analgésico e sapato ortopédico”, conta a mãe, que enfrentou uma verdadeira peregrinação entre Corumbá e Campo Grande.
Ao todo, foram mais de 50 viagens — entre exames, atendimentos e internações. A cirurgia só foi realizada no início deste ano, em 31 de janeiro. Agora, Nicoli aguarda vaga para iniciar a fisioterapia pós-operatória, mas ainda sem previsão.
Cirurgia adiada por três anos e judicialização
Outra mãe, Vera Lúcia Cardoso dos Santos, vive situação semelhante com a filha Thamires, de 18 anos, diagnosticada com mucolipidose tipo II e III, doença rara e progressiva que afeta ossos, órgãos e a mobilidade.
Mesmo tendo realizado uma cirurgia no quadril, Thamires precisou esperar três anos para retirar os pinos — procedimento que deveria ter ocorrido em três meses.
“Minha filha sente dor todos os dias. A cirurgia foi adiada várias vezes, primeiro por falta de sangue, depois por material, depois por Covid. Só depois que entrei na Justiça é que marcaram a internação”, relata Vera.
Além da dor física, a jovem enfrenta bullying na escola e abalos emocionais. “Ela já tem 18, mas parece uma criança. Os colegas riem, dizem que ela tem ‘problema demais’. Eu choro escondida. Não posso demonstrar fraqueza”, diz.
Thamires ainda precisa de uma nova cirurgia no outro lado do quadril, mas, segundo a mãe, será necessário recomeçar o processo. “Agora vão tirar os pinos. Mas a cirurgia do outro lado ainda nem está marcada. E o tempo vai passando.”
Diagnóstico atrasado e consequências graves
Na entrevista anterior, a médica Marina Figueiredo já havia alertado que atrasos como esses são comuns em casos como displasia do quadril, osteogênese imperfeita e outras doenças ósseas infantis.
“O que poderia ser resolvido com um colete em um bebê, vira cirurgia em uma criança maior. E com risco de sequelas permanentes”, afirmou.
Segundo ela, há casos em que a primeira fratura é o único sintoma visível de doenças graves, como tumores ósseos ou câncer infantil. A falta de atendimento precoce impede o diagnóstico e, muitas vezes, leva a complicações que poderiam ter sido evitadas com uma simples avaliação.
Congresso discute soluções em Campo Grande
Entre os dias 29 e 31 de maio, especialistas do Brasil e do exterior estarão reunidos em Campo Grande para o 13º Congresso TROIA – Traumatologia e Ortopedia Infantil, que além de apresentar avanços científicos na área, pretende capacitar médicos da atenção básica para detectar precocemente casos como os de Nicoli e Thamires.
“A ideia é justamente evitar que as crianças cheguem aos consultórios já em estágio avançado. Queremos levar conhecimento à rede pública, treinar pediatras e acelerar o diagnóstico”, disse Marina. A programação completa do evento está disponível nos sites troia2025.sbop.org.br e sbop.org.br.
Enquanto isso, mães como Gleicy e Vera seguem aguardando — algumas com esperança, outras apenas tentando resistir. “Não é só dor física. É cansaço, é humilhação. A gente sente que está lutando sozinha”, resume Vera.