O Banco de Olhos Anjos da Visão, da Santa Casa de Campo Grande, tem registrado baixa no número de captação de córneas, tecido que tem sido cada vez mais procurado devido ao aumento na fila de espera pelo transplante. A médica oftalmologista, Cristiane Bernardes, disse em entrevista à Rádio CBN que a queda na doação tem impactado diretamente no número de transplantes realizados nos últimos três anos.
“Está tendo um aumento crescente e a gente espera que aumente essa fila, porque no Brasil todo, espera-se um acréscimo de 200% na fila para transplante de córnea”, explicou. Conforme a médica, um dos principais motivos para o aumento foi a suspensão da captação de córneas em pacientes de ‘coração parado’ durante os primeiros anos da pandemia de covid-19.
As doações são separadas em dois tipos: a de coração parado, que seriam as mortes ‘comuns’, e as de morte neurológica. “O Ministério da Saúde e a Anvisa determinaram que as captações de coração parado fossem suspensas até que se tivesse maior entendimento sobre a covid. E isso impactou muito nas doações, porque o maior número de doações são as de coração parado”, explicou.
Em 2020, o Banco Anjos da Visão ficou quase o ano inteiro sem captações de córneas desse tipo de doador, sendo retomada somente em 2021, mas com outra onda elevada de casos de covid-19, que é uma contraindicação absoluta para captação, as doações voltaram a cair, informou a especialista.
Dados do Banco de Olhos da Santa Casa da capital apontam que de 2019 para 2021 houve uma diminuição de 79,51% no número de transplantes realizados no local, devido a uma baixa de 92,54% de doadores.
Pacientes com algum problema de córnea são divididos em dois setores; cirurgias eletivas e prioritárias. Controlado pela Central Estadual de Transplantes o setor de eletivas possui uma única fila para todo o estado, sejam pacientes oriundos do Sistema Único de Saúde (SUS) ou de convênios particulares. Já os pacientes inclusos na fila de cirurgias prioritárias “pulam” a ordem da fila e passam a ser os primeiros a receber o transplante devido ao risco de perda de visão.
Enquanto aguardam na fila, que hoje chega a 280 pacientes dentro de Mato Grosso do Sul segundo a médica oftalmologista, o risco de perda da visão é cada vez maior. “É um número recorde para a gente, levando em consideração que em anos anteriores tivemos status de fila zero, que é você se inscrever na fila e no máximo em duas ou três semanas ter a sua córnea. Ficamos três/dois anos consecutivos com essa fila zerada, mas anos últimos anos a gente tem sofrido bastante com essa fila”, lamentou.
Outro problema gerado durante a pandemia foi a falta de acompanhamento dos pacientes que receberam o transplante, aumentando o nível de rejeição. A equipe médica notou esse prejuízo após a retomada do atendimento ambulatorial desses pacientes, em meados de 2021 para 2022, segundo Cristiane. “A gente teve um número bem grande de pacientes que iniciaram com rejeição ou falência, que se tivessem vindo normalmente aos seus retornos a gente provavelmente teria revertido essa situação”, lamentou.
No primeiro ano após o transplante o acompanhamento precisa ser mensal, quando não realizado, implica diretamente no aumento de pressão da vista, na rejeição, ponto frouxo e até infecção. “A gente teve muito impacto por conta dos serviços que não estavam fazendo esse tipo de atendimento em decorrência da covid”, disse.
Doadores
Além da contraindicação, por conta da covid, a negativa familiar é um dos principais fatores para a queda nas doações. Só em 2020, conforme dados da Organização de Procura de Órgãos da Santa Casa de Campo Grande, 50% das famílias não autorizaram a captação de órgãos. “Está tudo certinho para ser um potencial doador e a família, na última hora, não entende a importância (da doação) ou não sabe se a pessoa queria ser doadora”, informou.
Cristiane alertou ainda sobre a necessidade de conversar com a família e demonstrar o desejo de ser um doador. “A pessoa não precisa deixar nada por escrito, basta apenas conversar e até para quem deseja doar outros órgãos”, completou.
Esteticamente a doação fica imperceptível. “Receio que às vezes afasta doares ou até faz com que familiares repensem na decisão de doar o tecido. Ninguém percebe que a pessoa fez a doação da córnea. Depois que você retira o globo ocular é feita toda a reconstituição. A equipe tem o maior cuidado, exatamente para que isso não impacte negativamente em possíveis doações”, explicou a oftalmologista.
Diagnóstico precoce
No Brasil, o principal motivo para a indicação de transplante é o Ceratocone, doença que acomete pacientes adultos/jovens. O pico de alteração visual – com sintomas como visão embasada e meio turva – é da adolescência até 30 anos de idade. Cristiane revelou que em países de primeiro mundo esse não é o principal motivo. “Eles conseguem tratar esses pacientes previamente para que eles não cheguem até a fila”, explicou.
Isso porque o diagnóstico muitas vezes é tardio, seja pela falta de acompanhamento por um profissional logo nos primeiros sintomas do paciente ou pelo desconhecimento das duas partes. “A gente tem muita dificuldade com isso porque o sistema público ainda não oferta todo tipo de tratamento para o ceratocone. Aqui em Mato Grosso do Sul, por exemplo, a gente não tem o crosslinking, procedimento que seria preventivo. Então, esses pacientes acabam indo para a fila (do transplante)”, revelou.