Temos consciência de nossa finitude. Dizer que o ser humano é o único animal que sabe que vai morrer é coerente com a filosofia dos antigos gregos. Para Sócrates, quase todos temem a morte como se ela fosse o maior dos males. Ele, porém, dizia que a felicidade é um bem da alma, alcançável apenas por meio da conduta virtuosa e justa, e que sofrer uma injustiça era preferível a cometê-la. Recusando-se a fugir da prisão, mesmo tendo essa oportunidade, enfrentou serenamente a condenação: em 399 a.C., tomou o cálice de cicuta e partiu em paz.
Steve Jobs, já com diagnóstico de um tumor no pâncreas, não via a morte como um fim trágico, mas como um mecanismo essencial para que inovações floresçam. Num dos trechos mais marcantes de seu discurso de formatura em Stanford (2005), afirmou: “A morte é provavelmente a melhor invenção da vida. Ela remove o velho para dar lugar ao novo. É um agente de mudança.” A morte, na visão de Jobs, é uma força ativa que impulsiona transformações tanto para o avanço da humanidade quanto para abrir espaço a novas gerações.
A natureza é cíclica: folhas caem para dar lugar a novas, plantas morrem e fertilizam o solo, e assim também é com a tecnologia, com as ideias e com a própria humanidade. Sem o ciclo da substituição — de pessoas, cargos, produtos e práticas — o progresso se estagna. Aceitar serenamente nossa mortalidade não é morbidez: é realismo, é humildade, é libertação do ego.
Só os humanos possuem a clarividência da finitude, que nos acompanha diariamente — às vezes como assombro e angústia, outras vezes como resignação ou sublimação. A morte não é antítese da vida: o oposto da morte é o nascimento. E é nesse intervalo que a vida acontece. No livro de Salmos, o sábio Salomão relata a preferência por um funeral em vez de uma festa, pois seria no primeiro que se pode contemplar o verdadeiro sentido da vida.
Permita-me uma breve digressão filosófica: a vida é bela, sim, mas quem dela espera apenas alegrias pede a ela o que não pode oferecer. A existência exige resiliência e capacidade de adaptação — um princípio darwinista diante de uma realidade que se impõe com força.
A vontade humana não é soberana. São as circunstâncias que, em grande parte, nos moldam e direcionam. Assim, a vida é guiada apenas parcialmente pelo livre-arbítrio, pelas escolhas e pelos desejos que cultivamos. Em boa medida, somos movidos por forças transcendentes, pelos desígnios do Criador, pelo acaso e, inevitavelmente, pelas pessoas que nos rodeiam. Esse entrelaçamento de fatores forma o que chamamos de circunstâncias, e é nelas que nos encontramos.
Como bem expressou Ortega y Gasset: “Eu sou eu e minhas circunstâncias.”
Nesse intervalo entre o nascer e o morrer, sempre há vida (e vida em abundância) quando há propósito, espiritualidade e positividade. Isso se concretiza quando nos mantemos úteis, solidários, mentalmente ativos e, sobretudo, saudáveis. Como bem expressou Arthur Schopenhauer: “Saúde não é tudo, mas sem ela pouco
podemos.” Para ele, o sofrimento físico era um dos maiores entraves à felicidade — e, portanto, à plenitude da própria existência.
Carrego com carinho uma lembrança marcante da adolescência: todas as semanas, minha família se reunia para rezar o terço, num ritual conduzido com profunda devoção por minha avó italiana. Ao final das preces, ela sempre dizia com ternura: “E agora, vamos rezar uma Ave-Maria por uma boa morte.”
Numa noite de fevereiro, já com 80 anos, ela nos despertou com gemidos vindos do quarto. Cada suspiro soava como um silencioso presságio de adeus. Meus pais correram para chamar os demais filhos dela, que moravam perto. Enquanto isso, a pedido de meus pais, permaneci ao lado dela, segurando uma vela entre suas mãos. E assim, serenamente, sem dor, após um dia comum de trabalho, ela partiu com suavidade, agraciada, como sempre desejou, por uma boa morte. Deixou saudades, muitas saudades, e não alívio. Deixou, acima de tudo, um legado que ressoa por gerações. Tantas décadas já bem vividas, em tom de gracejo, costumo dizer aos amigos: é hora de salvar a alma, pois o corpo já está perdido.
“Tu és pó e ao pó retornarás.” Essa frase do Gênesis ecoa como um lembrete sereno da efemeridade da vida. Diante da morte, não há títulos, fortunas ou diplomas que nos distingam — ela nos iguala a todos, nivelando ricos e pobres, letrados e simples, fortes e frágeis. É uma sentença universal que convida à introspecção: o que estamos deixando para trás em nossa travessia? Quais marcas inscrevemos nas vidas que tocamos? De afeto ou de feridas? De luz ou de escuridão?
Reconhecer a finitude não deve nos levar ao desalento, mas despertar um senso de propósito. Viver não é apenas atravessar os dias: é deixar pegadas que acolham, inspirem e edifiquem.
Jacir J. Venturi, diretor de escolas e professor. Autor dos livros Da Sabedoria Clássica à Popular (em dois volumes); Cônicas e Quádricas; Álgebra Vetorial e Geometria Analítica.
*Jacir J. Venturi, autor de livros, entre eles Da Sabedoria Clássica à Popular, é vice-presidente do Conselho Estadual de Educação do PR(CEE/PR), foi diretor de escola e professor da UFPR, PUCPR e Universidade Positivo