Veículos de Comunicação

Três Lagoas

?O abuso acontece dentro de casa?

Miriam Monteiro Herrera Hamed, presidente do Conselho Tutelar de Três Lagoas

-
-

Com 258 votos, Miriam Monteiro Herrera Hamed, 40 anos, assumiu o cargo no Conselho Tutelar depois que um conselheiro foi cassado. Ela era a primeira suplente e que, recentemente, chegou à presidência do Conselho Tutelar. No entanto, a atuação como defensora dos direitos da criança e do adolescente não vem de agora. No mandato passado do Conselho, ela chegou a assumir o cargo por sete meses e antes disto, de 2005 a 2007, atuou no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA).

Jornal do Povo: O que é o Conselho Tutelar?

Miriam Hamed: O Conselho é um órgão de proteção aos direitos e deveres da criança e do adolescente. O nosso trabalho é garantir direitos como segurança, escola, atendimento médico, entre outros e atuar na prevenção e combate aos crimes contra a criança e o adolescente. No entanto, é importante destacar também cobramos os deveres. Muitas crianças acreditam que a instituição é destinada apenas para defender os direitos e estão tirando proveito disto e muitos pais, por desconhecer o nosso trabalho, nos temem.

JP: Você acredita que é necessário ter um perfil para atuar nesta área?

MH: Não é um trabalho fácil. O conselheiro lida, muitas vezes, com crimes revoltantes. Para isto, ele tem de ter conhecimento e sensibilidade suficientes para lidar com esta criança. É muito complicado, você tem que ter cautela com o que fala e com o jeito de conversar com esta criança. Além disto, se controlar para não deixar que o sentimento comprometa o trabalho. Muitas vezes, tive de contar até dez.

JP: Teve algum caso recente em que teve de conter a revolta?

MH: O último caso de agressão registrado. A mãe espancou a filha de apenas dois anos e meio por que ela fez birra em uma loja. A criança teve de ser encaminhada para o hospital com ferimentos graves por todo o corpo. No mesmo dia, foi feito o boletim de ocorrência e a criança foi retirada da mãe, por ordem judicial, e entregue ao pai. Mas foi revoltante. Tive de contar mais que dez.

JP: Além da questão emocional, há riscos na profissão de conselheiro?

MH: Muitos. Já tivemos casos em que o carro do Conselho Tutelar foi alvejado por disparos de arma de fogo. Em alguns pontos da cidade, nossa equipe precisa do apoio da PM para entrar. Há poucos dias mesmo fomos ameaçados por três pessoas com pedaços de pau nas mãos. No mês passado, deixaram duas plataformas de cimento gravadas de pregos atrás dos pneus do carro. São pessoas que não gostam do trabalho do Conselho, acham que é errado retirar uma criança da situação de risco. Para eles, espancar e estuprar é que é o certo.

JP: E os casos de violência contra a criança e o adolescente, são muitos? Você tem dados do ano passado?

MH: A nossa estatística anual ainda não foi fechada, mas posso garantir que o índice de crimes sexuais contra a criança e o adolescente é assustador. Aqueles que estão de fora não acreditam nas coisas que acontecem aqui, muitos ainda acham que crimes como os com que lidamos só acontecem em grandes centros. E o mais preocupante: a maioria dels foi praticada por alguém de dentro da casa, próximo à criança. São tios, primos, avós, pais e principalmente o padrasto. Hoje, 80% dos crimes de abuso sexual infantil foram cometido pelo parceiro da mãe da criança. As mulheres precisam pensar e conhecer bem o parceiro que irão colocar dentro de casa quando já possui filhos. 

JP: Para as crianças, quais são as marcas deixadas pelo abuso?

MH: São para sempre. Quando está sofrendo o abuso, ela muda totalmente de comportamento. Esta mudança é manifestada na escola. Geralmente, ela fica triste e o rendimento escolar drasticamente. Depois, por mais que haja um acompanhamento psicossocial [no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas)], não há como fazer com que os traumas desapareçam por completo. Dificilmente, esta criança ou adolescente irá esquecer do abuso sofrido.

JP: Qual a sua avaliação sobre a participação das escolas na luta contra o abuso?

MH: Depois de uma série de palestras e campanhas dentro das escolas, tanto para alunos quanto para professores, a participação melhorou muito e já refletiu positivamente no nosso trabalho. Porém, a nossa maior colaboradora tem sido a população. Recebemos denúncias anônimas 24 horas por dia. A população se conscientizou sobre a gravidade dos crimes e está mais atenta a eles. Mais de 60% dos casos apurados pelo conselho partem dessas denúncias anônimas.

JP: Há casos de negligência por parte das mães?

MH: Em cerca de 40% dos casos a mãe prefere proteger o companheiro. Tivemos um caso em que a mãe não só ficou do lado do padrasto, como abandonou a filha e foi embora com ele. Mas também temos o contrário. Casos em que as mães não só denunciam como consegue ajudar o nosso trabalho. Foi o caso de uma mãe. Após descobrir o abuso, ela fez de tudo para não levantar suspeitas e ligou para a polícia. Graças a ela, o agressor foi preso em flagrante enquanto tomava tereré na frente da casa. Cheguei a elogiar a atitude para a mãe. São raros os casos em que os autores são presos. E, neste caso, ele está no presídio

JP: E é a Rede de Proteção à Criança e o Adolescente, funciona?

MH: A rede é a união entre todos os órgãos de defesa dos direitos da criança e do adolescente, da Assistência Social e também de segurança pública, como Polícia Rodoviária Federal, Militar e Polícia Civil. O objetivo é realmente criar mecanismos em que uma instituição apóie a outra em prol da criança e do adolescente. No passado conflitos entre órgãos e até mesmo pessoas acabou dificultando o processo de implantação. Mas posso dizer que hoje ela está acontecendo, temos vários órgãos envolvidos. Agora, todos falam a mesma língua.

JP: Três Lagoas passa por um período de crescimento assustador, a estrutura do Conselho está conseguindo acompanhar?

MH: O número de profissionais realmente é pequeno diante da realidade. Somos cinco conselheiros para atender toda a Cidade e o volume de trabalho não é pequeno. Todos nós estamos sobrecarregados. Mas é preciso lembrar que, perto de muitos conselhos da região e até do Estado de São Paulo, estamos muito bem de estrutura. Em alguns lugares, nem secretária há. O nosso problema era a questão de veículo, que já foi solucionado: ganhamos um novo da Prefeitura. A solenidade de entrega deve acontecer na próxima semana

JP: No começo da entrevista, você disse que era necessário reforçar que o Conselho Tutelar também atua nos deveres da criança, por quê?

MH: Todos os dias registramos casos em que as crianças ameaçam denunciar pais para o Conselho Tutelar para não serem punidas. Cheguei a atender um caso em que uma pré-adolescente de 12 anos estava se debatendo e gritando para chamar a atenção de vizinhos. Conseguiu. Fomos chamadas e quando vi, ela estava sozinha no cômodo da sala. Para você ter uma base, chegamos a atender uma média de dez pais por dia que nos procuram dizendo “não saber mais o que fazer com os filhos”. Alguns querem deixar os filhos conosco. O que, não é possível.

JP: O que leva uma adolescente ter uma postura como esta e o que o conselho faz nestes casos?

MH: Acredito que tudo esteja relacionado ao alicerce familiar mal feito. Os pais não se importaram em acompanhar o filho quando podiam e depois perderam o controle da situação. Costumo dizer o seguinte: o pai pode bater na criança para educar, o que não pode é espancar. E repito isto para os próprios pais. Em casos como estes, eles são orientados a terem mais pulso firme com os filhos. Dependendo do caso, também acompanhamos a criança para o psicólogo.