O número de mulheres assassinadas em Mato Grosso do Sul por motivo de gênero expõe uma realidade que se repete ano após ano. Somente neste ano, 27 mortes foram registradas como feminicídio no estado. O caso mais emblemático foi o da jornalista Vanessa Ricarte, morta em fevereiro, horas depois de procurar atendimento na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (1ª Deam) em Campo Grande. A tragédia colocou em evidência falhas no sistema de acolhimento e investigação policial, gerando cobrança de autoridades, sociedade civil e órgãos de controle.
Em resposta à repercussão, o Ministério Público Estadual abriu um inquérito civil para investigar denúncias de atendimento precário na 1ª Deam, que recebe casos de violência doméstica e violência contra mulheres. Desde então, multiplicaram-se relatos de vítimas e profissionais que apontam obstáculos para registrar ocorrências, dificuldade em juntar provas e até desestímulo ao registro formal de denúncias. O volume de queixas levou o Grupo de Atuação Especial no Controle Externo da Atividade Policial (Gacep) a intensificar a fiscalização sobre o funcionamento da delegacia.
O promotor de Justiça Douglas Oldegardo, coordenador do Gacep, explica como está sendo conduzido o processo de apuração, quais falhas já foram detectadas e quais medidas estão em andamento para transformar o atendimento prestado às mulheres. Ele também comenta a criação de uma segunda unidade da Deam em Campo Grande, a defasagem do efetivo policial e os caminhos para que a população participe do controle desse serviço essencial.
Vocês iniciaram esse trabalho para identificar falhas. É papel do Ministério Público atuar nesses casos para avaliar o atendimento prestado à população?
DOUGLAS OLDEGARDO Sim. Embora não seja uma das linhas mais visíveis do Ministério Público, é uma das mais relevantes: o controle externo da atividade policial. Esse controle, previsto na Constituição de 1988, existe há quase 40 anos. O Ministério Público exerce essa atividade internamente, fiscalizando o trabalho policial no dia a dia, buscando identificar pontos de melhoria para que a população seja melhor atendida e receba uma prestação de Justiça mais adequada desde o início das investigações.
Quais falhas foram identificadas desde o caso da Vanessa Ricarte?
Douglas Oldegardo A 1ª Deam de Campo Grande, assim como outras unidades policiais do Estado, já vinha sendo fiscalizada pelo Ministério Público. A partir do caso Vanessa Ricarte, que, além de um fato jurídico, se tornou também um fato político, muitas lanternas se voltaram para aquela unidade. Reunimos e concentramos todas as reclamações e queixas sobre o local. São denúncias de pessoas que procuram a delegacia das mais variadas formas — inclusive mulheres que tentaram juntar provas e procedimentos e não conseguiram, porque a tentativa foi obstaculizada. Temos relatos vindos do setor psicossocial de mulheres que dizem ter sido desestimuladas a registrar ocorrência de violência doméstica dentro da própria unidade policial. Situações diversas que apontam para uma crise de atendimento.
Essas falhas são do sistema, do atendimento humano, falta de capacitação ou um combo?
Douglas Oldegardo Em caráter preliminar, me parece um conjunto de fatores. Existe falha de sistema — o sistema de segurança pública ainda é precário —, mas houve um tempo em que ele nem existia, e a percepção de segurança da população era maior do que é hoje. Também não podemos atribuir tudo à falta de capacitação: no passado, não havia treinamento nenhum; hoje, embora ainda insuficientes, existem cursos. O que temos é um somatório de debilidades que, juntas, geram esse resultado negativo.
Quais mudanças concretas as mulheres em situação de violência podem esperar?
Douglas Oldegardo Hoje o que nós temos ali é uma falha importante no que chamamos de ‘diligência reforçada’, ou seja, o dever do Estado de dar atenção especial a grupos vulneráveis. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos determina que, quando há violação de direitos humanos em casos envolvendo grupos vulneráveis — e mulheres em situação de violência se enquadram nesse grupo — o Estado deve agir com prioridade na proteção dessas pessoas. Ali nós não temos percebido isso. Observamos uma deficiência nesse atendimento. O funcionamento atual, quando muito, chega ao nível de uma delegacia normal, embora haja uma tentativa significativa das pessoas que lá atuam. O que queremos agora é intensificar essa atenção reforçada para que a unidade seja um modelo de atendimento e de defesa dos direitos humanos das mulheres vítimas de violência. Queremos que ela seja um local de atendimento prioritário e rápido, que promova uma resposta ágil e que esclareça, em tempo satisfatório, a verdade sobre o sofrimento que essas mulheres enfrentaram.
O governo anunciou a criação de uma nova unidade da Deam. Isso pode melhorar o atendimento?
Douglas Oldegardo Nós costumamos dizer que a 1ª Deam de Campo Grande, na verdade, são duas delegacias em uma só. Ela funciona 24 horas por dia, sete dias por semana, em regime de plantão, recebendo os casos, e também atua no horário de expediente com a investigação dos crimes que chegam para serem apurados. Com a criação da segunda unidade, as investigações irão para outro espaço e a 1ª Deam ficará exclusivamente com o atendimento inicial, ou seja, a recepção dos casos de urgência. Isso já nos parece interessante para fins de controle e avaliação. Teremos, de forma isolada na unidade da Casa da Mulher, a possibilidade de mensurar como esse atendimento chega, qual a velocidade, qual o percentual de demandas com prisões ratificadas ou desfeitas pela autoridade policial e por qual motivo. Vamos poder ter um raio-x melhor enquanto os casos de investigação posterior irão para a segunda unidade, que processará essas demandas de forma mais eficiente.
O efetivo atual é suficiente para atender à demanda?
Douglas Oldegardo Não. Em termos absolutos, ele não é suficiente. Temos um concurso em andamento para o ingresso de 300 investigadores e seis escrivães, mas, mesmo com esse reforço, continuará insuficiente. O quadro atual de cargos para investigadores e escrivães foi definido com base em um censo do início da década de 2010. Temos uma dupla defasagem: além de estarmos aquém no número atual, o próprio quadro foi desenhado para uma realidade populacional de quase 15 anos atrás. Precisamos atualizar esse quadro, atualizar esse censo e, feito isso, vamos perceber que o déficit é muito maior do que os cálculos atuais indicam. O Gacep já tem um procedimento em andamento para atualizar o efetivo. Esse procedimento está nas mãos do Procurador-Geral de Justiça, Romão Ávila, no Centro de Autocomposição de Conflitos e Segurança Jurídica (Compor), para diálogo com o Poder Executivo, visando um incremento neste concurso e, se possível, um número maior de investigadores, agentes e também delegados, para melhorar esse quadro.
Como a população pode contribuir para melhorar esse atendimento?
Douglas Oldegardo O grande auxílio que precisamos da população é a coleta de dados informativos sobre o funcionamento da unidade. Qualquer pessoa que tenha passado pela 1ª Deam e julgue ter recebido atendimento falho ou insuficiente deve nos informar. É possível fazer isso pelo número 127, da Ouvidoria do Ministério Público. O ouvidor-geral, Renzo Siufi, encaminha o caso para nós, e ele é imediatamente inserido no inquérito civil que o Gacep conduz para tentar melhorar o fluxo da demanda.