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Três Lagoas

"Fazer teatro não é caça níquel"

A entrevista da semana é com o diretor do Teatro de Tábuas, Daniel Salvi

A entrevista da semana é com o diretor do Teatro de Tábuas, Daniel Salvi -
A entrevista da semana é com o diretor do Teatro de Tábuas, Daniel Salvi -

Há mais de dez anos participando do Teatro de Tábuas, Daniel Salvi, 30 anos, é ator e um dos diretores da ONG N.E.T.T. – Núcleo Experimental Teatro de Tábuas. A formação como ator foi feita na própria companhia, sob a instrução de Jorge Luís Brás -fundador e membros do Teatro de Tábuas. Em entrevista exclusiva ao Jornal do Povo ele revela as conquistas e os dissabores de fazer arte em um país que pouco valoriza a cultura.

Jornal do Povo: Porque Teatro de Tábuas?

Daniel Salvi – O nome foi escolhido porque no primeiro teatro que construímos, a matéria-prima utilizada foi a madeira. Como sabíamos que seríamos um grupo de experimentação teatral, ajustamos o nome.

JP – Como surgiu a idéia de criar a ONG?

DS – Tudo começou em 1999. Era uma necessidade particular do Jorge – idealizador do Projeto. Ele teve grande parte de sua formação artística no Pernambuco, depois de trabalhar 16 anos lá voltou a São João da Boa Vista decidido a trabalhar com novos desafios. Ele não criou o grupo com a intenção de ser apenas um teatro, a proposta de criar um fluxo de espetáculos no interior, fora do eixo das capitais e dar oportunidade a novos talentos, foi uma consequência e as proporções foram somando vitórias. O Jorge tem uma metodologia própria. Sempre primou para que os atores não fossem necessariamente formados, eles poderiam até ter passado por experiências, mas o objetivo era que eles não tivessem passado por nenhuma formação para aprender dentro da ONG.

JP – Você comentou que queria ser jogador de futebol. Como aconteceu essa transição até chegar ao palco?

DS – Cheguei a investir na carreira de jogador. Mas, por duas vezes consecutivas quebrei o pé. Levei isso como um sinal, um aviso. Desde os 12 anos eu trabalhava como ator. Foi a oportunidade que tive para me envolver com o teatro de maneira profissional. Aos 19 anos desisti do futebol e hoje só acompanho e sofro pela tevê.

JP – Como aconteceu o processo de expansão do Teatro de Tábuas?

DS – Nós começamos com teatro amador, fazíamos apresentação em escolas. Mas desde a primeira apresentação queríamos envolver os alunos em algo diferente de qualquer conceito já passado. Por isso, após o teatro os professores pediam uma reflexão e apresentação de uma vivencia de vida. Todo esse trabalho era feito por meio de redação e desenho do que essas crianças e adolescentes tinham presenciado. Como o resultado foi bom a diretora da região pediu para que as apresentações acontecessem com mais frequência, foi quando começamos nossa caminhada.

JP – Vocês não são apenas um grupo de teatro, como encontraram o diferencial?

DS – Nós não queríamos estar apenas em uma frente de atuação. Em outro linguajar somos artistas associados a uma trupe de duas caras. Começamos com a contribuição de poucas pessoas e como a ONG foi se consolidando o grupo começou a crescer.

JP – Qual o objetivo do Teatro de Tábuas?

DS – Nosso objetivo é democratizar o acesso a cultura e educação. Trabalhamos por todo o país e passamos por lugares de público formado e por tantos outros que nunca se quer viram teatro.

JP- Você prefere apresentar para um público de opinião formada ou para aqueles que nem sabem o que é teatro?

DS – Enquanto artista estou preocupado exatamente com a opinião desse público formado, enquanto pessoa me encanto em levar espetáculos onde não há nada. Certa vez estava em uma apresentação no Pernambuco e uma mãe, que era professora e estava na platéia me falou que tinha 37 anos e era a primeira vez que assistiria um filme no cinema e um espetáculo de teatro. A voz dela ainda está viva na minha memória: ‘meu filho não vai precisar esperar mais de 30 anos para poder ver isso’. Acontecimentos como estes me fazer ver a responsabilidade que trazermos, não queremos ser melhores, queremos ter qualidade, ser dignos e formadores de opinião.

JP – Quais são os projetos do grupo?

DS – Hoje temos quatro grandes projetos que se consolidam como o Estrada a Fora, que leva cinema e teatro há populações carentes. O Auto de Natal, responsável pela magia e o encanto de final do ano. Temos também o Congresso de Arte e Educação, que é voltado a educadores e acontecem palestras e oficinas e o Auto da Paixão. Queremos ser uma rede integrada de difusão cultural.

JP – O Teatro de Tábuas possui um diferencial dos demais grupos de teatro existentes no Brasil?

DS – Nosso ponto positivo é justamente tentar criar uma forma própria de ser, e temos conseguido. Sobreviver da Arte no Brasil não é fácil. Hoje temos patrocinadores que nos auxiliam principalmente na logística. As grandes empresas ainda não estão acostumadas a projetos de lei como a Rouanet. Nós fizemos muitos trabalhos para conseguir chegar aonde estamos, antes de conseguirmos visibilidade ralamos muito.

JP- Qual a principal dificuldade encontrada pelo grupo ao longo da caminhada?

DS- Além de apoio de patrocinadores tínhamos um desafio logo no começo. Tínhamos a peça montada, mas não tínhamos espaço para apresentar. Às vezes íamos a uma cidade que não possuía teatro, não tinha espaço físico bom e isso era uma constante. Nós temos um idealizador muito bom e ousado, que é o Jorge. Ele tem idéias utópicas, sempre primou pela diferença e se propôs a quebrar paradigmas, foi ele quem idealizou nosso caminhão. Buscamos qualidade e esse é o nosso diferencial. Muitas vezes ouvimos "Nossa, isso não vai dar certo!". As pessoas estão acostumadas a pensar que Arte não é importante para suas vidas e, por isso, nem se permitem olhar com outros olhos. "Quebrar" esse estigma às vezes é cansativo, mas estamos lutando.

JP- Como você se imagina daqui há  10 anos?

DS – Quero acreditar que cheguei num nível bom. Fazer teatro não é caça níquel. É possível viver bem por meio da arte. Tudo depende do que a pessoa considera viver bem. Eu sou feliz com o meu trabalho, ganho muito mais que dinheiro. A arte é uma grande troca, é um ideal de trabalho, onde me possibilita em cada lugar ter uma troca com diferentes públicos

JP – Como é investido o valor das apresentações?

DS – Temos uma estrutura que demanda dinheiro na manutenção. De todo o dinheiro recebido, 80% do valor é reinvestido, 20% vai para o pagamento do pessoal. São mais de 60 colaboradores, sendo 45 fixos. No Teatro de Tábuas, os técnicos são contratados para os serviços que realizam, e os atores são pessoas que optaram viver do que fazem. Todos viajam na itinerância ou desenvolvem seus trabalhos em São João, por isso estão sempre ligados às atividades do teatro.

JP-  Qual a sua formação?

DS- Sou formado dentro do Teatro de Tábuas. Metodologia, psicologia do ator e formação baseada na metodologia de Ariano Suassuna que foi professor do Jorge. Fiquei cinco anos em processo de formação

JP- Qual foi o espetáculo mais marcante?

DS – Não posso negar que alguns marquem mais do que outros. Em Angico, na Bahia, apresentamos o espetáculo em uma comunidade de 800 pessoas e foi algo impressionante. Era uma energia que sentimos coletivamente. À tarde, enquanto montávamos o palco, ajeitávamos as cadeiras o pessoal ficava olhando. Foi o único lugar que conseguimos apresentar para 100% das pessoas. A lua estava linda, naquela noite tudo contribuiu. Quando percebemos que conseguimos tocar uma pessoa, uma criança, que alguém se emocionou e, mais que isso, que alguém mudará algo em sua vida porque mexemos com ela.