A Depois do fim da Guerra Fria, a democracia liberal passou a ser vista como o melhor e mais seguro modelo político. Autores como Francis Fukuyama chegaram a afirmar que estaríamos vivendo o “fim da história” — ou seja, que não haveria mais alternativas viáveis à democracia. No entanto, mais de 30 anos depois, esse otimismo deu lugar a um cenário preocupante: vivemos uma crise democrática global.
Regimes autoritários e governos com poucos compromissos com a liberdade e a justiça estão ganhando espaço em várias partes do mundo. Instituições como a Freedom House e o V-Dem Institute mostram que mais de 70% da população mundial vive hoje sob regimes autoritários ou sistemas políticos mistos — uma situação parecida com a dos anos 1980. Essa crise não afeta apenas países com democracias frágeis. Nações consideradas exemplos de democracia, como os Estados Unidos, a Índia e a Hungria, também estão enfrentando sérios desafios. Em muitos casos, são os próprios líderes eleitos que, pouco a pouco, enfraquecem as instituições que garantem a separação de poderes e os direitos dos cidadãos.
Por que a democracia está em crise?
Essa crise tem várias causas, tanto internas quanto externas. Dentro dos países, a globalização aumentou as desigualdades sociais e econômicas, gerando frustrações e ressentimentos. Muitos cidadãos se sentem abandonados pelas elites políticas e deixam de confiar nos partidos tradicionais. Isso abre espaço para líderes autoritários que se apresentam como “salvadores” de fora do sistema.
Além disso, o crescimento das redes sociais e a disseminação de fake news dividiram a sociedade e enfraqueceram a confiança das pessoas na política e até na ideia de verdade. Fora dos países, ações de potências ocidentais que tentaram impor a democracia por meio de guerras — como no Iraque, Afeganistão e Líbia — acabaram trazendo mais instabilidade. Essas intervenções reforçaram o discurso de que a democracia seria uma imposição cultural do Ocidente, o que líderes autoritários têm usado a seu favor para se apresentar como defensores da soberania nacional.
Um novo tipo de autoritarismo
Os regimes autoritários de hoje são bem diferentes das antigas ditaduras. Eles não rejeitam a economia de mercado nem a tecnologia. Pelo contrário: usam essas ferramentas para controlar melhor a sociedade. A China é um exemplo claro disso. O país mistura forte controle político com crescimento econômico e um sistema avançado de vigilância digital, baseado em dados e reconhecimento facial. Além disso, amplia sua influência global com projetos como a Nova Rota da Seda, oferecendo aos países em desenvolvimento uma alternativa à democracia liberal ocidental.
A Rússia também é um ator importante nesse cenário, usando desde campanhas de desinformação até ações militares — como a invasão da Ucrânia — para enfraquecer a ordem liberal. Outros países, como Turquia, Hungria e Irã, misturam religião, nacionalismo e autoritarismo para manter o poder em ambientes internacionais cada vez mais tolerantes com regimes repressivos.
Ainda há esperança para a democracia
Apesar desse avanço autoritário, a democracia ainda sobrevive e é defendida por muitas pessoas ao redor do mundo. Vimos protestos corajosos em Hong Kong, Belarus e Irã, além da resistência da Ucrânia diante da agressão russa. Também no Ocidente, movimentos sociais que lutam por justiça racial, igualdade de gênero e ação contra as mudanças climáticas mostram que os valores democráticos ainda têm força.
Mas, para que a democracia continue viva e forte, ela precisa se renovar. Isso significa enfrentar problemas internos, como as desigualdades, a desinformação e a ideia de que a democracia liberal seria o único caminho possível — o que muitas vezes causa rejeição em outras culturas.
Um mundo com diferentes modelos de poder
O mundo caminha para uma nova ordem global, mais complexa e com várias potências em disputa. Em vez de uma divisão clara como na Guerra Fria, agora temos uma competição entre modelos diferentes de governo: democracias e regimes autoritários disputando influência e apoio, especialmente nos países em desenvolvimento.
A China e os Estados Unidos, por exemplo, competem em áreas como economia, tecnologia e política internacional, mas operam dentro de um mesmo sistema global. Isso torna o cenário ainda mais desafiador e imprevisível.
A democracia é um projeto em construção
O futuro da democracia liberal ainda está em aberto. Mesmo enfraquecida, ela continua sendo um sistema que permite autocrítica, protege liberdades individuais e se adapta a novas realidades. O caminho para enfrentar o autoritarismo não está em tentar voltar ao passado, mas sim em reinventar a democracia — tornando-a mais justa, mais inclusiva e mais eficiente.
No fim das contas, o que está em jogo não é apenas a forma como os governos funcionam, mas o tipo de sociedade que queremos construir para o futuro.
*Felipe Vasconcelos é criador do Observatório Atena.